Precisamos falar sobre Steven Avery e o poder destrutivo da mídia


 Toda profissão tem sua culpa, donos de fast-foods se culpam por surtos de obesidade, quando não estão ocupados demais nadando no dinheiro, urbanistas devem se culpar pela forma como as cidades se desenvolveram de forma hostil a pedestres, se você for conversar com alguém de marketing sabe que eles se acham responsáveis por todas as coisas boas e ruins que já aconteceram no mundo, o ego da profissão é bem grande. Mas como um jornalista eu certamente sei que a minha profissão tem várias culpas, bem mais palpáveis que a de algumas profissões.

Uma das maiores culpas da mídia está na forma voraz como ela cobre certas histórias, são vários casos e eu não estou falando de estupidez pura e simples que vemos muito por aí na TV, especialmente no Brasil, existe uma diferença no que é prejudicial ou puramente estúpido. Na finada e saudosa série The Newsroom, a minha personagem favorita, Mackensie McHale descreve bem a diferença entre "futilidade e veneno" no jornalismo, um só é vergonhoso para a profissão, o outro faz mal a sociedade.


Apesar de haver centenas de casos sobre isso, eu quero falar sobre o mais óbvio de todos, o caso do momento, o caso de Steven Avery, que todos acompanharam ou deveriam ter acompanhado na série documental da Netflix, Making a Murderer. Esse caso é simplesmente a maior bagunça da qual se tem notícia hoje. Uma bagunça da mídia que o cobriu na época, uma bagunça do sistema judiciário que o julgou, uma bagunça da Netflix e dos produtores da série, uma bagunça da reação da mídia atual, uma bagunça que provavelmente alguém vai achar nesse texto, uma bagunça que vem de todos os lados.

Para quem não está a par do assunto, você seriamente deveria estar, Steven Avery é um homem de uma família detestada em seu condado, que cometeu alguns delitos leves, mas imperdoáveis em sua adolescência. Ele jogou um gato na lareira, quem faz isso? Teve problemas com a esposa de um policial e chegou a apontar uma arma para ela. Até que um belo dia ele foi acusado de tentativa de estupro e os policiais influenciaram a vitima de que foi ele quem tinha a atacado, devido a descrição do agressor bater com a descrição dele. Como toda decisão importante baseada em testemunho de outros tem um grande chance de ser um erro imediato, o julgamento foi baseado no testemunho da vitima que o acusou de estupro e após um julgamento pífio e mal feito ele foi preso. 18 anos depois, uma evidencia científica provou que quem estuprou a mulher foi um outro suspeito que a policia descartou prontamente, apesar de o condado vizinho insistir de que esse outro suspeito era o culpado.
Após alguns anos de sua soltura, uma jovem mulher chamada Teresa Halbach foi assassina e a última pessoa que ela viu foi Steven Avery, ela era uma fotografa e ele tinha um ferro velho, foi um trabalho comum, ela foi até o local para fotografar alguns carros e sumiu depois disso.

A mídia obviamente sem nenhum atrasado, foi voraz em lançar suspeita sobre Steven, ele passou 18 anos na prisão e apesar de não ter cometido o crime, bem, você sabe como são as coisas. A polícia do seu condado, com o incentivo de estar sendo processada em valores astronômicos, também não pensou duas vezes antes de tê-lo como principal suspeito, de fato, ele foi a única pessoa investigada sobre o desaparecimento de Teresa, o que não seria um problema, porque ao que tudo indica a polícia acertou em cheio, havia evidencias que apontavam para Avery como o culpado pelo crime de homicídio de Teresa Halbach.

E aí entra a mídia e... Nancy Grace, para quem não conhece; Nancy Grace é uma apresentadora de TV americana “daquelas”. Coincidentemente quando eu mencionei o momento de The Newsroom onde eles discutem entre futilidade e veneno no jornalismo, o caso está relacionado a forma como a própria Nancy Grace cobria um crime, lembrando que a série de Aaron Sorkin, apesar de ficcional, envolvia eventos e pessoas reais, nesse caso envolvia Grace.

Obviamente Nancy Grace cobriu o caso na época em que ele se desenvolvia, anos atrás, lançando ares suspeitos sobre Avery e hoje, depois do lançamento do documentário da Netflix, ela voltou a bater no caso mostrando uma “avalanche” de evidencias, de acordo com ela, que provavam que Avery é definitivamente o culpado de assassinar Teresa Halbach, como se fosse dever ou direito dela mostrar que alguém é culpado de algo. Na verdade todas as evidencias que ela mostrou foram mostradas também no seriado, todas refutáveis, mas obviamente elas foram mostradas com seu misto clássico de ódio velado e indignação forçada. Além disso ela também trouxe uma ex-namorada de Steven, a Jodi que aparece no documentário, para falar sobre como ele era um monstro, falando isso hoje quando Steven já arrumou uma nova namorada (mesmo na prisão) e quando na época ela era, pelo que mostra o documentário, 100% devotada a ele e a sua inocência, no mínimo soa como uma opinião... não confiável.

Como se não fosse o bastante, Nancy continua fazendo afirmações como “balística é igual a impressão digital” se referindo a balística ter provado que a bala encontrada na garagem de Steven Avery, meses depois da primeira busca policial, veio de uma arma dele, Grace tenta com uma informação erradíssima, provar uma coisa que a defesa de Steven admite e sempre admitiu, a bala foi encontrada lá, pode mesmo ter sido disparada por uma arma dele e tinha sangue de Teresa nela, a defesa nunca disse que não, apenas disse que a bala foi forjada e plantada, mas para aflorar os ânimos de sua audiência, Nancy “esqueceu” desse detalhe.

No final, a apresentadora ainda acusa a Netflix de ser parcial... que irônico. Veja você mesmo uma entrevista com ela sobre o assunto no vídeo abaixo:



Nancy Grace não foi a única, ela só chama a atenção por ser a mais absurda de todos, mas na época da investigação a mídia fez a “presunção de inocência” de Steven Avery acabar e impossibilitou um julgamento completamente justo. A cobertura voraz sobre o assunto pode simplesmente ter destruído não uma, mas duas vidas, porque tem o caso do sobrinho de Steven que é ainda mais bagunçado, e ainda ter deixado um criminoso solto por aí. Independente dele ser culpado ou não, um dos jurados (dispensado na última hora) afirmou que pelo menos três jurados bem teimosos já estavam convencidos de que ele era culpado antes do julgamento sequer começar graças a tudo dito na mídia sobre o crime. Será que isso vale a audiência? Será que não deveríamos ser mais cuidados com o que cobrimos e como cobrimos? Talvez a imparcialidade seja necessária afinal das contas.

Agora a Netflix é santa nisso? Talvez, é difícil falar mal da empresa mais legal da atualidade, a empresa que renovou Gilmore Girls para um revival, mas dificilmente eu posso me manter em cima do muro sobre os produtores de Making a Murderer, em especial Laura Ricciardi e Moira Demos que são os rostos mais conhecidos por trás da série e as idealizadoras dela.

Laura e Moira fizeram um incrível trabalho como editoras de uma série documental, é claramente um documentário com mais cliffhangers que Game of Thrones, mais empolgante que a maioria das séries de canais fechados por aí e com melhor acabamento que qualquer série da CW. Quando eu comecei a assistir a série foi pensando em escrever uma crítica sobre ela, eu daria uma nota próxima de 10 pelo entretenimento, mas estou escrevendo isso porque eu percebi que isso não é entretenimento, isso são vidas e envolve todo um sistema.

Sem provas contundentes o suficiente, a defesa e a própria série defendem Steven Avery acusando policiais de coisas que talvez eles não cometeram e isso poderia gerar uma movimentação popular perigosa, acusando pessoas de formas perigosa, expondo casos pessoais como o do promotor no último episódio de forma desnecessária, simplesmente como um ataque a sua moral para provar quem sabe com uma mera insinuação de que ele poderia estar errado em outro caso, ou pelo menos que ele também tem as mãos sujas.

A questão é, todo o caso é uma bagunça, tanto pelo lado da série da Netflix, quanto do sistema judicial absolutamente falho dos EUA (e de todo lugar na verdade) e de uma batalha de diferentes mídias, todas parciais e todas prejudiciais, seja aquelas que assim como eu, estão escrevendo sobre o caso em poucas horas conhecendo o assunto apenas há poucas semanas ou seja o caso de Laura e Moira que trabalham no caso há mais de 10 anos e que se envolveram emocionalmente demais com a família Avery. Tudo o que esse caso precisava era de mídia imparcial, para qualquer lado. Ou melhor, de mídia nenhuma.

Ao menos uma coisa é um fato, independe do que o documentário quis dizer sobre Steven Avery, independente se ele é culpado ou não, ele quis dizer algo muito importante sobre como o sistema judiciário é quebrado desde de seus fundamentos. Laura Ricciardi e Moira Demos conversaram um pouco disso no programa de Steven Colbert que vocês podem assistir abaixo:



Se esse documentário pelo menos servir para uma conscientização sobre uma reforma judiciaria, tudo valeu a pena, se servir apenas para dividir as pessoas numa disputa de internet de “Steven fez, Steven não fez”, bem, Making a Murderer nesse caso é tão prejudicial para a sociedade quanto Nancy Grace. De qualquer forma, ao menos servir como entretenimento e mais nada ao menos ele serve, porque é realmente uma obra muito bem-feita nesse sentido.

Agora a minha opinião pessoal se Steven Avery cometeu ou não o crime? Bem, eu não sei porque eu deveria ter uma opinião sobre isso, eu vi o caso de forma detalhada apenas por uma visão parcial a favor dele e ainda assim não me convenci de sua inocência, apenas me convenci de que há dúvidas e isso é tudo o que eu tenho a dizer, eu tenho dúvidas e não certezas e como um jornalista que escreve num blog online sobre cultura pop, isso é a única coisa que eu preciso ter. Sobre o caso de Brendan Dassey, sobrinho de Steven, a própria Nancy Grace admitiu que o garoto é uma “caixa de Pandora”, se mesmo ela tem uma opinião dessas, porque eu teria uma diferente.

Agora uma coisa é certa, como Steven Colbert disse, Making a Murderer me fez pensar que talvez o sistema judiciário deveria no final decidir não entre “Inocente e Culpado” e sim em “Provado ou Não Provado”, quem sabe menos injustiças fossem feitas e um trabalho mais bem feito da promotoria seria exigido. Agora se referindo ao primeiro caso, onde Steven foi preso erroneamente, qualquer mente pensante sabe que basear julgamentos em testemunhos é no mínimo um crime contra a lógica, é assustador só de pensar que você pode ser preso simplesmente porque uma pessoa achando que está fazendo uma coisa boa, disse que você cometeu um crime. Na verdade, depois de ver Making a Murderer, é assustador só em pensar em como um crime é julgado e em como advogados podem ser incríveis ou terríveis dependendo se você não tem ou não dinheiro, e o mais assustador de tudo é como a sua presunção de inocência é frágil, especialmente se a mídia decidir falar um pouco sobre o assunto.
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