Eterno Amor | Crítica


É extremamente difícil para mim decidir qual é a obra máxima de Jean Pierre Jeunet, Amelie Poulain ou Eterno Amor. Por mais que Amelie seja um filme perfeito e absoluto enquanto Eterno Amor tem ao menos um problema, esse segundo é a realização máxima do diretor  em termos técnicos.

A história adaptada do livro, Un long dimanche de fiançailles, de Sébastien Japrisot com o texto novamente de Jeunet e Guillaume Laurant o filme conta a história de Mathilde e de 5 condenados por auto-mutilação na Primeira Guerra Mundial. Um desses cinco é Manech, noivo de Mathilde, o qual ela se recusa acreditar que morreu e tenta reunir pistas que levem a encontrá-lo.

Usando o mesmo artifício de narração em off usado em Amelie Poulain, Eterno Amor consegue lucrar ainda mais com esse tipo de narrativa, pois toda a pompa usada nessas narrações se encaixam perfeitamente no contexto de época no qual o filme se passa, mesmo quando a ideia é soar engraçado “Mathilde cerrou os punhos e se controlou para não chorar e assim parecer uma caipira que envergonha a todos” o filme consegue soar literário no ponto certo. Por vezes a narração até brinca de Amelie descrevendo os gostos e desgostos de Mathilde, como é feito com todos os personagens do filme anterior de Jeunet.
A narração em off do filme é só um dos recursos que Jeunet usa pra contar a história, o outro é o flashback que entrecorta praticamente todas as cenas. Flashbacks da Guerra que são vistos por Mathilde através do que ela consegue reconstituir dos fatos que ela tem, junto com as memórias pré-guerra com as lindas cenas do Farol e a explicação do que significa as letras MMM que Manech gravava em uma arvore enquanto um “Albatroz” tentava matá-lo.

Os personagens do filme parecem ter saído do mesmo universo criado pelo diretor em seu filme anterior, não há uma criatura completamente desprovida de doçura e loucura em iguais partes. O Cozinheiro Celestin Poux, o Detetive Germain Pire, o Carteiro que gosta de estradas de cascalho a prostituta Tina Lombardi vivida pela ótima Marion Cottilard, todos sem exceção parecem ter saído de uma das fabulas comum de Jeunet.

Confesso que ainda não li o livro de Japrisot, mas estou curioso para saber onde termina a genialidade de Jeunet e Laurant e onde começa a de Japrisot, pois a poesia impressa no filme é linda demais para ter sido encontrada por Jeunet, mas também é profunda demais para ter sido completamente criada em uma história já existente.

E me refiro tanto as poesias em texto, como todo o conceito de Manech sentir o coração de Mathilde pulsando em sua mão quando na verdade é o latejar da ferida de tiro que lhe tirou os dedos. Uma referencia a primeira noite em que os dois passaram juntos onde ele adormeceu com a mão em seu seio. Além disso as superstições auto-impostas de Mathilde, onde se vê que ela começa a mudar de algo para o qual ela pode controlar, como “Se eu alcançar a curva antes do carro, Manech volta vivo!” para coisas que não dependem mais de si mesma.

Ou as poesias visuais como a brilhante cena com o fósforo, que é tocante, ou cenas como a do cemitério Terre del Anne, ou quando Mathilde finalmente visita o Bingo Crepúsculo.

Toda a “poesia visual” do filme é amparada por uma das melhores Fotografias da história do cinema, se não a melhor, ao menos a minha preferida. Novamente por Bruno Delbonnel e dessa vez no lugar do verde e vermelho persistentes no último filme, aqui a Primeira Guerra Mundial exibe cores envelhecidas e pobres, enquanto o pós-guerra da busca de Matilde por Manech exibe um dourado e alaranjado lindo, que denotam elegância exagerada, mas também um ar outonal, como se tudo estivesse para morrer todo o tempo, ou ao menos a esperança de Mathilde.

Os cenários em si também são grandiosos e lindos, não é atoa que os dois Oscars para qual recebeu indicação tenham sido Direção de Arte e Fotografia. O filme é visualmente arrebatador, um trabalho magnífico e de encher os olhos mesmo daqueles que não tendem a apreciar tanto esse tipo de trabalho mais detalhado e bem cuidado.

O trabalho de Jeunet como diretor também alcança seu ápice aqui, nunca antes o diretor alcançou o primor técnico esbanjado em Eterno Amor, cenas com gruas, tomadas aéreas e sequencias em movimento épicas, reparem, por exemplo, a cena do “Preparar Baionetas”, onde em um plano apenas Jeunet cobre toda a trincheira e toda a ação dos soldados. Fazendo referencias que vão desde a Kubrick e Cidadão Kane até a própria Amelie Poulain, o cinema de Jeunet nunca esteve tão maduro, ao menos tecnicamente.

Tudo isso é claro pontuado magistralmente pela trilha sonora incrível e emocionante de Angelo Badalamenti, um dos melhores compositores de trilha de nossa geração, que infelizmente não ganha tanto espaço quanto John Willians e Hans Zimmers por aí.

E se as atuações não fossem a altura de todo esse espetáculo nada disso teria valido a pena, então não é por menos que Jeunet escalou novamente Tautou para a protagonista do filme, depois do show que ela da em Amelie Poulain. A Mathilde de Tautou é linda, apaixonante e por vezes provoca sinceras emoções no espectador, a cena em que ela fala para si mesma “Como sou boba” com lagrimas nos olhos é quase de fazer a plateia chorar de tão triste, doce e ao mesmo tempo feliz que é sua expressão.
E se não fosse o bastante, ver Tautou atuar frente a frente à Marion Cottilard é quase que ver o ápice da atuação do cinemão Frances contemporâneo. As duas dão um show juntas e não vale deixar de mencionar a brincadeira quase adivinhando o futuro que Jeunet faz com Cottilard quando a manda referenciar Edith Piaf com sua frase “Je ne regrette rien”, mais tarde em 2007 Marion Cottilard ganhou o Oscar por interpretar a própria Edith em uma cinebiografia.

Dominique Pinon novamente está em um papel um pouco menor, ele é o tio de Mathilde aqui, mas o tamanho do papel não diminui sua genialidade. Mas no lado masculino quem rouba mesmo a cena é o próprio Manech, vivido por Gaspard Ulliel que da um verdadeiro show de interpretação.

Se Eterno Amor tem algum defeito, além dos anacronismos completamente perdoáveis, errinhos de fatos e uma ou outra bobeira da produção (como os dedos que Manech perdeu estarem na mão dele na sua última cena, embora o ator e a câmera tentem disfarçar) está no excesso de complexidade da trama, sua atenção tem que estar 100% voltada para trama se não quiser perder um passo dado por Mathilde e ainda assim talvez você deixe ser guiado pelas certezas da personagem e não pelos fatos apresentados em tela até tal momento, visto quantos detalhes são jogados a você ao mesmo tempo o que quase tira a possibilidade de você encontrar algum eventual furo de roteiro, se é que existe algum.

Entretanto isso é muito pouco para sequer arranhar toda a qualidade técnica e a emoção que Jeunet traz, se O Fabuloso Destino de Amelie Poulain é sua obra prima, Eterno Amor é o atestado de que ele é um dos mais grandiosos diretores da atualidade.

NOTA: 9,9
Patreon de O Vértice