Delicatessen | Crítica

O primeiro longa de Jean Pierre Jeunet em uma parceria com Marc Caro, o mesmo que após alguns anos o ajudaria com Ladrões de Sonho e que antes co-dirigiu seus curtas, é um filme extremamente irregular, mas que prima pela fantasia única que deu o tom dos filmes seguintes do diretor.


A trama de Delicatessen é confusa e se sustenta com dificuldade, a explicação sobre seus detalhes vem aos fragmentos para os olhos e ouvidos do expectador e por se passar em um mundo fictício ou em uma realidade alternativa, isso dificulta um pouco a identificação que temos com os personagens e com a situação vivenciada no filme.


A trama segue a história de um ex-circense que começa a trabalhar como ajudante de açougueiro em um pequeno cortiço, lá é costume contratar e manter esses ajudantes para engordá-los até o dia em que o açougueiro o mata e sua carne é distribuída para os vizinhos do cortiço, que de outra forma não conseguiriam uma refeição decente já que a escassez de comida domina o mundo nos últimos anos, contudo a filha do açougueiro se apaixona pelo novo ajudante e o ajuda a sair dessa confusão.


A trama daria um filme de terror teen imbecil como muitos dos que se proliferam por aí atualmente, mas os personagens e a comédia quase Burtoniana são ressaltadas e dominam o tom do filme. Alias, Jeunet é mestre em criar personagens únicos, vários deles tem peculiaridades tão distintas que mereciam um filme inteiro sobre eles, em especial uma das personagens que busca jeitos inusitados de cometer suicídio, modos esses que se revelam sempre ineficazes.


Outra dica que podemos ter aqui é a forma como a fotografia e a direção de arte teriam importância nos próximos trabalhos do diretor, o Laranja tão usado em Eterno Amor e o verde tão ressaltado em Amelie Poulain são as cores dominantes aqui, e por pior que pareça a combinação as cores resultam na mesma magia que conheceríamos em seus filmes posteriores.


Além da beleza visual, Delicatessen também busca piadas e jogos visuais interessantes, alguns mais interessantes do que outros usados em filmes posteriores, chamo atenção para um deles em especial, que é a coreografia da vida no cortiço, em certo momento uma trucagem na montagem do filme revela os afazeres dos moradores do local são mostrados quase como uma inventiva dança, uma das melhores cenas do longa uma e de longe uma das cenas mais interessantes da carreira de Jeunet.


Contudo essas “belezas visuais” na fotografia, montagem e direção de arte e até mesmo na composição de personagem não apagam diversos problemas de roteiro e de coerência no filme e não só incoerência na trama, como incoerência na direção também.


Sobre a trama é até covardia analisá-la com um olhar mais crítico, pois ela parece ter sido escrita como forma de levar a cena 1 até a cena 2, ou da situação A até a situação B, e em nenhum momento Jeunet e Caro demonstram qualquer pretensão na sua história além dessa de condutor de situações e piadas. Contudo as falhas na direção são mais prejudiciais.


É fato que o filme se passa quase inteiramente em um local fechado, algo até compreensível visto que esse era o primeiro longa da dupla e dificilmente eles tinham dinheiro o suficiente para filmar em diversas locações, os cenários ali construídos apesar de bonitos devem ter sido criados em um único e pequeno estúdio, mas um diretor mais experiente consegue passar uma noção espacial muito melhor que a dos dois. Durante o decorrer do filme, a ideia daquele prédio existir em um mundo real qualquer é quase inconcebível, todas as formas e direções em que Jeunet e Caro filmam “gritam” para seus olhos ESTÚDIO.


E, além disso, a falta de ritmo em certos momentos é desconcertante, talvez se não fosse o elenco extremamente bem escolhido e encabeçado pelos ótimos Dominique Pinon e por Marie-Laure Dougnac essa falta de ritmo seria ainda mais problemática, mas por sorte o carisma daqueles que estão em tela balanceiam bem essa carência.


Delicatessen é muito mais um exercício de estilo do que um filme de verdade e é primoroso como exercício, é o trabalho inicial e vigoroso de um dos diretores mais estilosos em atuação no momento, contudo apesar de ter gostado do filme não posso deixar de notar que os problemas nele são demasiado grandes para perdoar completamente. Delicatessen, se feito pelo Jean Pierre Jeunet de hoje seria uma obra prima, mas o resultado obtido em 1991 deixou bastante a desejar.

Patreon de O Vértice