Inclusão social vs Talento nas premiações artísticas


Se você é a favor de Inclusão Social, não se preocupe que você vai se dar bem com esse post (ou não, você pode ser daqueles que problematiza tudo...), se você é contra a inclusão social, por favor, não feche essa postagem ainda. Eu sei o quando é insuportável a forma como alguns sites de cultura pop vem tratando do tema e desde já eu te prometo que você não vai ler aqui chavões irritantes como “lacrar”, “empoderar” e nem argumentos extremamente malucos e infundados, eu vou falar só de matemática e é uma matemática bem simples, em troca, abandone por alguns momentos também os seus chavões irritantes como “marxismo cultural” e “politicamente correto” ou sei lá qual o novo termo da moda.

Esse post é para falar especificamente de uma frase que eu ouço muito, especialmente em épocas de grandes premiações como o Oscar, que é a frase:
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“Eu não ligo para gêneros ou raça, quero saber de quem tem talento!”

Ou variações dessa frase, acontece que, por mais que ela seja uma frase bonita, ela não se sustenta muito quando você pensa sobre ela em contextos de premiações artísticas e, usando o Oscar como exemplo, pois é a premiação mais famosa de todas, o motivo dela não se sustentar são alguns números.

No mundo, eu sei que você não vai se surpreender com isso, mas 50% das pessoas são mulheres (até um pouco mais, mas vamos deixar nos 50/50), então nos EUA, a “terra do Oscar”, não temos porque pensar que esse número é diferente, se metade da população americana tem a possibilidade de, vamos dizer, liderar um filme, como pode ser aceitável que de 450 indicações a Melhor Diretor no Oscar, em 90 anos, apenas 5 dessas indicações tenham sido para mulheres? O número ideal seria 225 indicações para mulheres, mas digamos que o mundo não é ideal e que as mulheres deram azar algumas vezes, quem sabe 100 indicações para mulheres seria aceitável? 80 indicações? Tudo bem, o mundo era outro antes, era um mundo muito machista, quem sabe 30 indicações era aceitável? Bem, foram apenas 5.

Daí surge o primeiro problema, quando você diz alguma variação de “Eu não ligo para gêneros ou raça, quero saber do talento!” você meio que sem querer, meio que indiretamente está dizendo que as mulheres são ridiculamente menos talentosas do que os homens, e de certa forma essa frase só rende duas opções, ou é isso mesmo, ou as mulheres de fato são menos talentosas do que os homens... OU há alguma barreira social que impedem que mais mulheres sejam diretoras, escritoras ou assumam posições de liderança na indústria cinematográfica e concorram a mais prêmios.

Você lendo o termo Identidade de Gênero
Você vai querer fechar a página agora porque eu vou usar um termo que vai te irritar, mas aguente essa vontade porque vai ser só por um paragrafo. Vamos lá: Identidade de Gênero. Bem, você deve estar falando agora que gêneros são biológicos e não constructos sociais e você está certo em partes, mas alguma parte do que se define como gênero são constructos sociais, mulheres gostarem de rosa e homens de azul, mulheres usarem saias, homens não podem chorar... nada disso é biológico e eu ouso dizer que ninguém vai argumentar que a vontade de segurar uma câmera e contar uma história através de imagens, através do áudio visual também não é biológico.

Eu espero mesmo que alguém não argumente isso, pois imagina o quão difícil seria para a ciência provar isso? Eu tenho certeza que um chimpanzé de laboratório, macho ou fêmea conseguiria escrever o roteiro de Transformers 5, mas dirigir um filme ia ser bem mais difícil, mesmo que fosse um filme da franquia Transformers.

Mas voltando, se nós definimos aqui que as mulheres não são menos talentosas que os homens e não existe nada na biologia delas que seja contra o uso de câmeras para contar histórias então como explicar o motivo de que o número de mulheres no mundo não é representado no número de diretoras de cinema no mundo? Simples, existe algum filtro, alguma espécie de barreira social e cultural, que impedem mulheres de se tornarem diretoras, existem muitas opções do que seja esse problema, talvez elas sejam desencorajadas a trabalhos criativos desde pequenas, talvez a sociedade exija mais delas em outras áreas, enfim, podem ser várias coisas, ou todas ao mesmo tempo, não vou fingir que sei a solução para o problema, porque eu não sei, mas é fácil ver que o problema existe.

O mesmo vale para negros, a proporção de negros para brancos nos EUA é de 13%, (no Brasil é de 40%, só para constar), mas vamos subir um pouco esse número de negros, pois os EUA não fazem cinema sozinho, vamos aumentar pelo menos para 15%, pois outros países que fazem o cinemão têm mais negros do que os EUA e... 15% facilita a minha vida aqui na matemática.


Eu diria que o número de atores negros para atores brancos provavelmente bate, para cada Tom Cruise, Brad Pitt e Michael Cera que eu consigo pensar, eu lembro de um Samuel L. Jackson, Denzel Washington e Forest Whitaker, os atores negros não estão nada mal, embora ainda não tenham o protagonismo que matematicamente deveriam ter, com a exceção de alguns como o todo poderoso Will Smith, no fim das contas ao menos estão em peso em Hollywood... por outro lado, quando a gente fala de atrizes negras, a história é outra.

Tenta aí você, contando nos dedos, falar o nome de 10 atrizes negras... não vale abrir o IMBD e se você for um cinéfilo exclusivão, barroco que assiste 730 filmes por ano, você também não conta, se você é só um cara que gosta de filmes e pronto, tente lembrar nomes, nomes mesmo de 10 atrizes negras e sem pensar muito, só fale os nomes que vierem a sua cabeça.

Vamos lá, eu vou tentar aqui fazer o mesmo e sem trapacear: Tessa Thompson (meio que eu tenho uma quedinha por ela, então ela foi a primeira que veio na minha cabeça), Zoe Saldana (ela está em Star Trek e Guardiões da Galáxia, que nerd seria eu se não lembrasse dela?), Viola Davis (lembrei porque ela é fenomenal), Halle Berry (lembrei porque ela é horrível), Whoopi Goldberg (como não lembrar dela?), Lupita Nyong’o e... os nomes me acabaram, é claro que eu consigo lembrar de personagens como “Michone”, “A Irmã fodona do Pantera Negra” ou “A Protagonista chata de Star Trek: Discovery”, mas mesmo eu que estou aqui defendendo a inclusão social, não consigo lembrar o nome de 10 atrizes negras, eu provavelmente consigo lembrar o nome de 50 atrizes brancas sem pestanejar e de uns 100 atores brancos.

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Mas se as coisas estão ok para os atores negros e ruins para as atrizes negras, isso é porque eu não falei ainda sobre os cargos de liderança dos negros, sabe quantos diretores negros já foram indicados ao Oscar em seus 90 anos de história? Cinco diretores, sabe quantos roteiristas? Sete em uma categoria,  quatro na outra. Editores? DOIS! Em 90 anos, esse é o número ridículo da participação de negros na história do Oscar em cargos que não são de ator e atriz. Se 15% das pessoas que podem trabalhar com o cinemão americano são negras, como não tivemos 67 diretores negros indicados ao Oscar, ou menos se considerarmos como eram terríveis o tempo antes, como não tivemos nem 10 diretores? Como não tivemos 135 roteiristas negros indicados ao Oscar, ou novamente, como não tivemos nem 40 roteiristas negros indicados ao Oscar? Ou o pior, como não tivemos NENHUMA diretora e apenas UMA roteirista negra e UMA editora negra, indicada ao Oscar em 90 anos?

“Eu não ligo para gêneros ou raça, quero saber de quem tem talento!” Sério? Porque em lugares onde o talento é menos subjetivo, como no esporte, os negros são perfeitamente representados. Será que é algo biológico também? A diferença da cor da pele faz com que você não queira segurar uma câmera e contar uma história? Ou existe alguma barreira cultural e social que impedem que os negros alcancem lugares de liderança na indústria do cinema? Certamente os homens negros tem bastante representantes nessa indústria como atores, mas não como diretores e roteiristas.

No fim das contas, não é uma questão de quem berra mais, de quem tenta parecer um grande herói das redes sociais usando o superpoder da problematização, de quem tem os melhores termos exageradamente específicos ou de quem fala com mais condescendência, é uma questão de matemática, se metade das pessoas que podem trabalhar com cinema são mulheres, metade das indicações não divididas por gênero do Oscar deveriam ser de mulheres, se 15% das pessoas que podem trabalhar com cinema são negros, 15% de todas as indicações do Oscar deveriam ser de negros. Óbvio, isso iria variar de ano em ano, nem sempre esse número iria bater, mas essa deveria ser a média aproximada.

A Conta não Bate
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Eu tenho certeza que quando você diz essa frase, que eu já repeti algumas vezes, você não parou para pensar por esse lado matemático, que mesmo nesse “mundo chato e politicamente correto” basicamente só homens brancos são indicados e ganham o Oscar, você não quer dizer que naturalmente, mulheres e negros tem menos talento do que homens brancos.  

Então, se não é isso o que você está dizendo, tente parar de reclamar das tentativas de inclusão pois nada mais é do que uma tentativa de normalizar essa discrepância de números, talvez você não ache que seja feito da forma ideal, talvez você não goste da forma como as pessoas que estão trabalhando nisso pensam, mas você não pode dizer que o problema não é existe. E pense só, quem sabe você não pode ser o primeiro a pensar em como resolver esse problema do jeito que você acha o correto?

E quem sabe um dia, quando dos cinco indicados a melhor diretor, 3 deles forem mulheres, uma dessas três sendo negra, e dois indicados forem homens, um deles sendo negro, e ainda assim o homem branco ganhar, você pode estufar o peito e dizer vitorioso e com toda razão do mundo “Eu não ligo para gêneros ou raça, quero saber de quem tem talento!”
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