Sandman: Prelúdio | Crítica


Eu estava bem satisfeito com a ideia de jamais ter que escrever uma crítica sobre Sandman, dentre as minhas obras favoritas da cultura pop, incluindo aí toda a infinidade de possibilidades de obras que existem, desde Senhor dos Anéis, até Breaking Bad, Star Wars, Mass Effect e Doctor Who, Sandman é sem dúvida a minha obra favorita de todas e escrever uma crítica sobre ela é um desafio, mas aqui estou eu pra completar o desafio.

Sandman Overture, ou como será chamada na Brasil, Sandman: Prelúdio é o retorno de Neil Gaiman a sua maior obra para mais 6 edições contando a história que acontece imediatamente antes do nosso querido protagonista ser invocado e aprisionado na terra.

Nesse novo arco de Sandman, porém, Neil Gaiman é só um dos gênios por trás da obra, já que a adição do desenhista J.H. Williams III foi a decisão artística mais acertada dos últimos anos em qualquer meio. Sandman: Prelúdio tem algo que a série clássica nunca teve, uma arte tão genial quanto o texto. Tudo bem que você pode debater que a arte clássica é… clássica e eu não digo que ela seja péssima, embora em alguns momentos ela beire a ser, mas ela nem em seus picos de qualidade (que existem) chegou perto da genialidade visual que J.H. Williams III imprime em cada detalhe de cada página. Toda a ideia abstrata de sonhos é representada perfeitamente pela arte de Williams e as suas cores transformam tudo em um lindo delírio visual, impresso em páginas contando uma história tão grande quanto a criação e morte do universo.

Sandman: Prelúdio também tem a história mais épica do personagem até o momento. Morpheus nunca enfrentou nada desse tamanho em nenhuma de suas histórias, nem mesmo quando precisou escolher um herdeiro para a chave do inferno ou lutar contra sua própria morte, eu até diria que nenhuma história que saiu da mente brilhante de Neil Gaiman, seja para Sandman ou qualquer outra obra, teve um escopo tão grande quanto essa; uma estrela louca, um câncer universal, uma concatenação de sonhos e guerras galácticas que desencadeariam o fim do universo, tudo isso causado por um simples capricho de Morpheus, típico.

A primeira das seis edições desse novo arco é um pouco decepcionante quando vemos o todo da história, ela é a menos interessante e excessivamente indulgente, ela circula temas, revisita personagens, mas não nos leva a lugar nenhum em nenhum momento a não ser em suas últimas duas páginas, onde vemos algo inédito sem sabermos pra onde isso nos levará. A partir daí a história engrena num ritmo acelerado onde Morpheus descobre o problema a ser resolvido e começa a agir para resolvê-lo.

Obviamente o “ritmo acelerado” é no estilo Morpheus de velocidade, assim como a narrativa de Sandman sempre cria linhas tangenciais de histórias para ajudar contar a história principal, mesmo aqui com o destino do universo em jogo, Sonho ainda tem tempo para sentar ao redor de uma fogueira e contar para a menina Hope, ou talvez Esperança, a história de Alianora uma personagem misteriosa da série clássica e uma de suas rusgas com Desejo. Sandman sempre foi uma história sobre histórias e mesmo agora com a grande história de Sonho sendo contada, ainda há muitas histórias menores e singelas que impactam o grande evento.
Dentre essas histórias, nós temos até um breve conto sobre Hettie Maluquete e Daniel Hall, o novo Sandman num futuro bem distante da trama principal, apesar de bem curta, essa trama no início da segunda edição lembra muito mais as histórias da série clássica do que a trama principal de Overture, onde o novo Sandman precisa adiar um encontro com os Cavaleiros das Nuvens porque chegou a hora dele fazer algo que não pode ser atrasado e para isso ele conta com a ajuda de Hettie numa aventura simples, sombria e bonita, para  algo que nós só vamos entender como influencia a história principal muito depois.

Talvez um problema desse novo arco, e eu digo “talvez” porque eu não pensei o suficiente sobre isso ainda, é a adição de uma história familiar um pouco diferente das que nós temos normalmente, no lugar de apenas a relação entre irmãos dos Perpétuos, Neil Gaiman nos apresentou uma adição grandiosa a mitologia que é a Mãe e o Pai dos sete Perpétuos.  O problema dessa adição é que eu não sei até onde isso fere a mitologia que amamos e que já está estabelecida há muito tempo. Sempre foi sabido que os Perpétuos nasceram quando o primeiro ser vivo do universo nasceu e que morreriam quando o último ser vivo morrer e a Morte leva-lo. Os deuses, todos e eu imagino que aí é incluído o Deus Cristão, embora Gaiman evite de mencioná-lo sempre que pode por razões obvias, são criados a partir da fé dos seres vivos, ou seja… quem são então os pais dos Perpétuos? Não são seres vivos, e nem deuses pois cronologicamente não haveria sentido já que eles existem antes dos perpétuos nascerem.
O pai de Sandman é chamado de Tempo, e a mãe chamada de Noite, mas acho que podemos esticar o conceito para Escuridão, então seriam Tempo e Escuridão algo semelhante a Perpétuos, só que tão poderosos que seriam independentes da vida? É uma adição muito grande a uma mitologia já muito complexa, essa adição não é explicada plenamente e isso é um ponto a favor e contra ao mesmo tempo.

É divertido ver nessa questão da relação familiar que Morpheus tem com seu Pai e Mãe temas tão comuns da relação familiar humana e ao mesmo tempo temas tão transcendentes ao nosso pensamento, assim como é divertido saber que tanto Tempo quanto Noite tem seu filho preferido e obviamente não é Sandman.
Mas independente da mitologia e da trama, uma das forças dos arcos de Sandman são seus protagonistas momentâneos, nesse caso temos três; a menina Esperança, além de Sonho e do Sonho dos Gatos, outra versão sua que o ajuda na jornada no melhor estilo dos episódios épicos de Doctor Who onde uma versão do Doutor encontra a outra. Contudo, nada é muito óbvio e essa relação dos três protagonistas é muito mais profunda do que parece a princípio e o mistério sobre o Sonho dos Gatos não ser exatamente o que achamos que ele é, como a própria Delírio diz em um momento (brilhante diga-se de passagem, Gaiman deve se divertir muito escrevendo a Delírio), nos coloca um sorriso no rosto nas revelações “pós-créditos” sobre esse personagem. Obviamente como tudo em Sandman, mesmo a revelação do Sonho dos Gatos sendo bonita e inesperada, ela é ao mesmo tempo triste e mostra uma relação incorrigível de dois personagens complexos demais para estarem do mesmo lado, embora sempre estejam.

Quando a sexta edição desse arco termina, nós vemos que Neil Gaiman cumpriu sua promessa de mostrar como o tão poderoso Sonho conseguiu ser capturado por aquele grupo de magos mequetrefe no início da série clássica, o esforço que Sonho fez para resolver o problema que ele mesmo criou é imenso e ler as palavras de invocação que nós já conhecemos há décadas soltas como fumaça nas páginas finais é de arrepiar, assim como a escolha de última página do arco, uma página com uma imagem que conhecemos há muito tempo.
Neil Gaiman voltou a seu grande clássico e porque não, sua obra-prima, mais uma vez para mostrar que ainda está em forma e sabe contar não apenas uma história épica de Sandman, mas que sabe como contar a história mais épica já contada sobre o personagem, independentemente de ser a melhor história do personagem ou não, ela é sofisticada, tem um escopo absurdo, adiciona e muito a grandiosa e complexa mitologia da obra, tem o texto lindo de sempre e cheio de belas alusões ao futuro do Sonho e pela primeira vez, tem uma arte que chega naquele limite que parecia inatingível, onde um artista,  J.H. Williams III, consegue colocar o visual a par e sem dever nada ao texto brilhante de Gaiman em um de seus momentos mais inspirados.

Eu lhe concedo uma moeda feita de pedra
eu lhe concedo uma canção roubada da sujeira
eu lhe concedo um punhal retirado sob as colinas
e um cajado que foi cravado nos olhos de um morto
eu lhe concedo a garra de uma ratazana
eu lhe concedo um nome e o nome foi perdido
eu lhe concedo sangue extraído de minhas veias
e uma pena arrancada das asas de um anjo
eu o invoco com nomes…
da escuridão te chamam
para a escuridão te chamam.

NOTA: 10
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