'71 | Crítica

Uma nação em guerra como um palco de teatro. Um soldado no primor da juventude – e da inocência que esta confere –.  Mulheres e homens, homens e mulheres, e até mesmo crianças, que não conhecem o papel que na peça lhes foi dado. Personas sob um frágil tecido encharcado de sangue. O herói escolhe a voz de um guerreiro, porém chora quando vê uma vida escorrer por entre os seus dedos. ’71 é poderoso precisamente pelos tons cinzentos na sua paleta narrativa.

Em 1971, Gary, um jovem recruta britânico, é enviado para Belfast, onde o território está dividido entre protestantes e nacionalistas. Gary é abandonado pelos seus companheiros após um motim e torna-se testemunha de uma batalha cruel, tendo de encontrar qualquer maneira possível de sobreviver.

Demange constroi com sabedoria as sequências iniciais e tira proveito de todos os aspectos de produção – da montagem à sonoplastia – para transformar o público numa comunidade de voyeurs sádicos. Como a personagem de James Stewart em Janela Indiscreta (1954), o espectador é um intruso que, por ética, não detém o direito de assistir ao que está à sua frente. Lê-se esse voyeurismo, por exemplo, quando Hook está escondido – ofegante e desesperado – e a sua morte é quase certa. Aqui, a câmera dá zooms estilísticos, fraturando a moldura simplória de ficção e entretenimento que decora o longa e transformando-o num documentário cru.

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O’Connell está, como sempre, ótimo, embora não muito distante de tudo onde já foi creditado. Em alguns momentos – os finais, principalmente –, Gary Hook é indistinguível de James Cook. Não seria muito consciente da minha parte dizer que o resto do elenco está mal, porém é, de fato, O’Connell que conquista (e com pouquíssimas falas!). Engraçado é quando iluminação atrapalha e o cast inteiro parece composto por sósias. E nessas situações, Hook é o único que dá para reconhecer.

É uma pena, de verdade, que o argumento de Gregory Burke siga tanto o protocolo. Nunca ultrapassa a fronteira do apropriado. A perseguição teatral é bacana, mas semelhante a Encarcerado (2013), também protagonizado por O’Connell, ’71 afasta propositalmente múltiplas oportunidades de se exceder em qualidade. Estranho que um filme independente menospreze tanto o valor da liberdade criativa. A conclusão é cafona. Clichês são disparados como balas, conveniências como granadas. Além de ser confuso.

Thriller de ação bastante polido, mas aquém do possível. Se posto em cima da balança, vê-se que está abaixo do peso ideal.
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