Ladrão de Sonhos | Crítica

Há uma grande confusão quanto ao título desse filme no Brasil, se algo atrasou esse especial foi a dificuldade de encontrar essa pequena obra prima. Ladrão de Sonhos como é amplamente conhecido, ou A Cidade das Crianças Perdidas, que é a forma como eu o encontrei, é um filme impar, tanto na carreira de Jeunet e Caro quanto no cinema em si.


A trama do filme pode parecer a primeira vista confusa e sem sentido, mas com o decorrer do filme podemos perceber certas sutilezas que separam um exercício de estilo como Delicatessen de uma bonita e tocante fantasia infantil como Ladrão de Sonhos. Se na crítica do primeiro longa da carreira de Jeunet eu reclamei da trama, acusando-a de ser insignificante e feita apenas para levar de situação para situação aqui é o extremo oposto, a trama do filme é ligeiramente complexa, bem amarrada, completamente louca, mas envolvente. Arrisco a dizer que a trama é tão boa e inventiva que caberia facilmente nas paginas de Sandman, se apenas acrescentássemos o perpetuo de Gaiman.


Na trama acompanhamos One, um brutamontes ex-marinheiro que tem seu irmãozinho sequestrado pelos ciclopes, homens cegos com olhos mecânicos Steampunk e com audição extremamente sensível. Os ciclopes vendem crianças para um cientista que as usa para tentar experimentar seus sonhos, já que ele é incapaz de tê-los, mas sempre falha miseravelmente, pois as crianças assustadas com ele sempre têm pesadelos no lugar de sonhos. É então que One encontra Miette, uma menina esperta que age como ladra e o ajuda na busca de seu irmãozinho.


La Cité des enfants perdus


One, o brutamontes em questão é vivido por Ron Perlman em sua discreta carreira pré-Hellboy, já a menina Judith Vittet vive Miette, a atuação da pequena traz uma força e um carisma que chamam a atenção, além de toneladas de charme exaladas pelas suas expressões debochadas e por sua pinta no lado esquerdo do queixo. Vittet demonstrou tanto carisma que seria fácil imaginar que ela é hoje tão famosa quanto Tautou na França, mas infelizmente a menina não prosseguiu com sua carreira por muito tempo, mas apesar de se formar em economia, ainda trabalha com cinema na área de figurino.


Mas apesar da pequena Vittet arrasar em seu papel, quem dá show mesmo no filme é Dominique Pinon, e aqui temos uma overdose de Pinon que interpreta vários personagens, clones que trabalham para o cientista que tenta roubar sonhos. Provavelmente aqui foi onde se firmou realmente a parceria Pinon/Jeunet, que começou em Delicatessen onde o ator protagonizou o filme. A parceria dos dois poderia ser comparada a parceria Depp/Burton, o que de fato é uma comparação perfeita, pois ambos os atores adoram viver tipos estranhos, e ambos os diretores primam pela beleza estética esquisita e por histórias puras e infantis, contudo Jeunet injeta um pouco mais de alma em seus filmes.


Além da parceria Jeunet/Pinon começou em Ladrão de Sonhos a parceria de Jeunet com o roteirista Guillaume Laurant, que escreveu todos os outros filmes do diretor até então.


Outro que merece um destaque na atuação é Jean Claude-Dreyfus, que apesar de tender para o Overacting vez ou outra, faz uma composição crível em tão pouco tempo de um personagem tão bizarro.


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A infantilidade e a pureza iluminam tanto a tela quanto a belíssima fotografia de Darius Khondji (que trabalhou com Jeunet em Delicatessen e em Alien, além de ter trabalhado em Meia Noite em Paris com Woody Allen), os diálogos são todos escritos e ditos como se viessem de uma criança espertalhona e doce. “Não vamos desperdiçar a sola de nossos sapatos.”


Sobre a fotografia e a direção de arte e todo o visual, que é o forte de Jeunet (pelo menos nesse inicio de carreira), novamente tem como escolha o verde e o vermelho como principal paleta, novamente com um bom resultado, mas a perfeição dessa escolha só é atingida anos mais tarde em Amelie Poulain. De todo modo os olhos da Academia não deviam estar voltados para a Europa em 1996, pois é estranho ignorarem Ladrão de Sonhos em todas as categorias visuais, até mesmo na questão figurino. Embora fosse o ano de Coração Valente em um mundo justo o filme de Jeunet merecia ao menos ser lembrado em uma indicação.


Mas assim como em Delicatessen não é apenas o visual que chama a atenção, mas sim a inventividade e criatividade de Jeunet para imaginar personagens e situações, se em Delicatessen tínhamos divertidas coreografias das coisas simples, aqui as brincadeiras visuais são ainda mais complexas, a criatividade do diretor é bonita e tola (no bom sentido), algo semelhante a de Hanna Barbera, uma comparação valida especialmente quando vemos Miette assaltando uma casa usando um ímã, um rato e um gato. A comparação também fica bem óbvia quando vemos um mecanismo que separa um cachorro de uma cesta de salames e linguiças, uma corda presa ao mecanismo que simples afasta mais a cesta cada vez que o cachorro se aproxima.


Suas brincadeiras com coreografias mais complexas ainda estão presentes, como na cena em que as gêmeas siamesas que forçam as crianças a roubar estão cozinhando, a coreografia é impressionante e soa totalmente natural. Mas talvez o mais impressionante seja a brincadeira com o “efeito borboleta” quando uma única lágrima de Miette causa um acidente naval.


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É difícil encontrar defeitos em Ladrão de Sonhos, mas eles ainda existem e de certo modo o principal deles ainda seja a falta de noção espacial de Jeunet, fica muito difícil acreditar que o filme se passa em um lugar real, ou no caso um lugar fantástico, todo o tempo ainda parece que o filme se passa em um estúdio de cinema. Embora diferente de Delicatessen, vez ou outra Jeunet use truques pra amenizar esse problema.


Outra coisa que melhorou muito de seu filme anterior é a montagem e a edição, que deixou tudo com um ritmo melhor, muito melhor na verdade. A edição ainda permite brincadeiras com o surrealismo dos sonhos como dejavús seguidos e repetidos a exaustão em variações de velocidades tal como ocorre em pesadelos.


Momentos inspiradíssimos, personagens memoráveis uma atuação cheia de charme inocente de Judith Vittet e com a atuação vigorosa de Dominique Pinon roubando a cena, além de todo o lirismo, beleza e pureza da história fazem de Ladrão de Sonhos um dos melhores filmes de Jeunet, esse é um daqueles filmes que você vai querer assistir pelo menos uma vez ao ano.

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