Kung Fury | Crítica
Curtas-metragens são muito desvalorizadas, infelizmente. Eu adoro. "Vincent", curta de Tim Burton, é uma das melhores coisas que o cineasta já fez, por exemplo. É uma pena que uma grande maioria não enxergue esse tipo de produção como ‘filme de verdade’. Não é preciso entrar em Méliès (que é ótimo) ou outros autores ‘distantes’, os próprios brasileiros são responsáveis pela criação de curtas incríveis. Para quem duvida, é só conferir a nacionalidade de um dos diretores da categoria curta-metragem na última edição do Festival de Cannes – em que o nosso país quase sempre marca presença –.
Kung Fury é uma comédia de artes marciais sueca escrita, dirigida e estrelada por David Sandberg. O curta é uma homenagem/paródia aos filmes de artes marciais e policiais da década de 80 e foi produzido através de financiamento coletivo pelo Kickstarter. A história toma lugar na Miamo de 1985 e acompanha o detetive Kung Fury, que teve o seu parceiro assassinado por um ninja e ganhou super poderes após ser atingido por um raio (e mordido por uma cobra). Quando Adolf Hitler (a.k.a. Kung Führer) invade o presente e ataca a delegacia em que Fury trabalha, o herói decide viajar no tempo para a Alemanha Nazista e matar Hitler.
Para um curta independente, os efeitos estão mais do que competentes. São interessantíssimos, aliás. Principalmente por combinarem com o que a época que satiriza procurava, de quando os produtores de Hollywood estavam procurando inovações técnicas e ideias que melhor representassem o futuro. Mas bem que o Triceracop – que não apenas é uma referência, como também parece representar o clichê dos parceiros negros – poderia ter sido feito com animatrônica... ou só uma fantasia mesmo.
Qualquer um sabe brincar com clichês. Ou melhor, qualquer um consegue. É fácil, é óbvio. Fazer isso de um jeito que o próprio ato de parodiá-los deixe de ser clichê, no entanto, é difícil. Sandberg faz isso muito bem, coordenando toda uma galeria de atuações canastronas, por exemplo. E outros clichês são levados até hoje, como o hacker (aqui capaz de hackear desde tiros até o próprio tempo) ou trocadilhos escrachados (“you don’t need that spine, it’s holding you(r)back”).
O curta é cheio de boas piadas. Num minuto, um jovem estúpido acreditando que ‘positivo’ num exame de sangue é um bom sinal, e no outro um product placement na época dos Vikings (com um Thor que faz Chris Hemsworth sentir inveja). A discussão entre os dois soldados nazistas sobre o que é um bigode nazista é espetacular. Até mesmo os ‘cenários’, nascidos de puro chroma key, são engraçados, por destacarem tanto os contornos dos corpos dos atores e fazerem tudo parecer amador. E de amador o filme não tem nada.
O arsenal de referências é vasto. Muito. Da Power Glove da Nintendo até o Hal 9000. Dá para fazer uma tese de faculdade sobre o quanto de conteúdo dos 80s e 90s Sandberg consegue espremer em 30 minutos. Sem em momento algum parecer fora de lugar, talvez porque o próprio filme o seja. A abertura, os títulos acompanhados de notas de guitarra, a música synthpop, os temas e as paranoias sobre o futuro. Um final com direito a lição de moral por parte de um dinossauro, parceiros que se conhecem há algumas horas se tratando como amigos de longa data e uma piada ruim com que todos riem. É tudo abusivamente hilário.
As sequências de ação são espetaculares. Kung Fury se parece com um Operação Invasão chapado em ácidos, se lambuzando no absurdo e em coreografias de luta dignas de um jogo de arcade. Curioso, não? Um cineasta iniciante consegue fazer algo tão fantástico – e bem filmado, nunca se afastando do objetivo inicial: uma paródia – quando outros estúdios ‘especialistas’ (Marvel Studios, Warner e por aí vai) confundem destruição em massa com bons momentos de ação. Vai entender.
Preocupante é que filmes com premissas mais absurdas do que as de Kung Fury insistam em se levar tão a sério. Kung Fury é, além de uma comédia engraçadíssima e bastante inteligente, mais uma evidência irrefutável de que a criatividade não está entre os produtores milionários da América; ela está entre os cinéfilos anônimos que agarram em câmeras e começam a filmar.
PS: Kung Fury está disponível no YouTube. Você pode ver o filme aqui.