Procura-se Roteiros (Ou Hollywood: O Berço do Desprestígio Autoral)

Nos primórdios da arte cinematográfica, os roteiros não demandavam profissionais especializados. Produções mudas, experimentais, ainda focalizadas na descoberta da tecnologia de captação de imagens. Até que surgiram os pioneiros. Ou melhor, as pioneiras. A esmagadora maioria de roteiristas era composta por mulheres. Só no fim dos anos 20, com a chegada do som e o vislumbre do potencial comercial do cinema que os homens se apoderaram da indústria.


A meio de um workshop com Tiago R. Santos, cineasta português, ouvi que um argumentista deve fazer de tudo para não cruzar com o trabalho dos outros departamentos. Não é recomendado, por exemplo, dizer ao diretor de fotografia como enquadrar os planos ou ao realizador como conduzir a cena. Mas e quando, contra toda a lógica, a escrita é posta à parte do filme?


Hoje, como as mulheres foram sufocadas pelos homens – sem tocar em qualquer controvérsia feminista, comentário meramente histórico – na indústria, os produtores e diretores sufocam os roteiristas, tanto em relevância pública quanto em autoridade criativa. Quando um filme é elogiado, incondicionalmente do que esteja a ser louvado, é o diretor que recolhe toda a glória.


script2Robert Towne, escritor do script de Chinatown. Aposto que você só está habituado ao rosto de Roman Polanski.


Responsável por isto é a anatomia de Hollywood, o berço do desprestígio autoral. Ouso dizer que 91% (talvez reparem que, como Barney Stinson, uso diversas vezes a mesma porcentagem) dos argumentos dos feature films hollywoodianos são escritos por encomenda. Um produtor, diretor ou estúdio contrata um escritor para desenvolver uma história com conceito previamente ajustado. O mais notável exemplo que posso dar são os lançamentos da Marvel Studios.


Então, na prática, o que faz o roteirista? Bem, ele compõe a sinfonia para que a orquestra (crew) dê-lhe vida ao comando do maestro (diretor). Cabe ao restante da equipe transportar o script para o audiovisual, transformar literatura em cinema.


Voltando ao diálogo com o argumentista Tiago R. Santos, quando questionado acerca do seu script predileto, ele mencionou Chinatown de Roman Polanski como tendo um texto ideal. Está longe de ser o roteiro de que mais gosto, porém vamos pela palavra de um perito. Fechado, com personagens bem construídas e ótima descrição atmosférica. Aliás, pela palavra dos peritos, já que o noir de Polanski é frequentemente listado ao lado de Casablanca, Noivo Neurótico, Noiva Nervosa e Crepúsculo dos Deuses, considerados os maiores scripts já escritos no cinema americano.


script3Henry Fonda: o estrelato e o talento num bom argumento


Em essência, é o roteirista que traça o esboço de cada minuto de produção. Diálogos, ações, localizações, circunstâncias; todas elas ferramentas de redação. Quanto mais simplória a escrita, melhor. O talento do roteirista não está na sua coleção mental de verbetes, mas na capacidade de visualizar e descrever as situações que o espectador só consegue conceber quando colocadas em ação à sua frente.


Em Hollywood, as aparências sempre foram o mais importante. As estrelas possuem penteados luxuosos e peles de porcelana, puro glamour. O sentido de espetáculo grita. Na filmografia de Spielberg, o mais bem sucedido realizador que já houve – porém que sequer pode sonhar em ser o mais habilidoso –, o momento de maravilha é ubíquo. Os personagens vislumbram pela primeira vez algo indescritível e traduzem o sentimento de encanto do espectador. Em Hollywood, esses momentos fazem o cinema.


Não há nada de errado com o senso de maravilha, não me interpretem mal. O problema é que a atual Hollywood pouco mais tem a oferecer. O que um dia foi o lar de Greta Garbo e Henry Fonda hoje abriga, maioritariamente, carros, explosões e sexo. Novamente, nada de errado. Cinema é isso. É imagem, é som. É explosão, é riso. Mas não é só isso. E qualquer tipo de cinema que procure fazer algo diferente está sujeito a ser tachado de ‘pseudo-intelectual’, ‘cult’ ou qualquer outro rótulo esdrúxulo.


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O diretor trabalhou em Quando Duas Mulheres Pecam, acredita?


É fundamental entender que bons roteiros não necessariamente fazem bons filmes. Cinema é química. É a combinação de elementos cujas propriedades se fundem para dar origem a algo novo. Cinema também é matemática. Menos com menos dá mais.


Para exemplificar, permitam-me recorrer a Thriller: Um Filme Cruel. Produção assombrosa que Tarantino e eu adoramos. O que o faz assombroso não é o texto, é todo o resto. A edição é uma porcaria (insiste em transformar 30 segundos de filmagem numa cena de 2 minutos em slow-motion) e a sonoplastia é insuportável (ataca o ouvido com zunidos durante sequências de sexo ou batalha). O roteiro é o de menos. Se bem dirigido, talvez fosse decente.


Temos um problema quando o texto não acompanha as outras áreas de produção. Comparemos, e.g., as duas maiores adaptações do Drácula de Bram Stoker para a sétima arte. Enquanto a mais recente, de Coppola, possui um espantoso design de produção e a interpretação inspiradíssima de Gary Oldman, o argumento do Nosferatu de Murnau é absurdamente mais sensível, intelígivel e não nos esqueçamos que valente, pois transfere para as telas o conto de Drácula sem se agarrar ao esmagador poder do seu nome.


script5O cinema e o seu idioma próprio


É comum deparar-se com críticas a ‘roteiros que não são lá essas coisas e que dependem de atuações fantásticas para funcionar’. Equivocadas, no mínimo. O cinema é o visual, o sonoro. Competente é o argumentista que escreve personagens para que ganhem vida nas mãos de artistas brilhantes, pois o trabalho de construí-los não é só dele. Não só dele, mas também dele, é claro. É o que muitos diretores e atores não compreendem: a importância do roteirista está no mesmo nível que a sua. O seu trabalho não deve ser referido apenas quando é ruim.


A máxima de “o ator é bom, a culpa é do roteiro” me torva o juízo. O script não existe para regular o talento de ninguém. O de Whiplash: Em Busca da Perfeição não é fenomenal, porém as performances de Miles Teller e J. K. Simmons são. Se o aluno fosse vivido por Jake Lloyd e o professor por Rob Schneider, os personagens seriam ruins por incompetência do escritor? Não. O roteirista tem o seu próprio trabalho, não a obrigação de supervisar quem não faz o seu. Cabe ao diretor esta função e por isto sim ele merece crédito.


Isto não quer dizer que os guiões não tenham significância, como é óbvio. Cinema é áudio e imagem, acima de todo o resto. Se hoje o associamos à arte de contar histórias, é porque a estrada foi longa. O cinema é uma linguagem própria, uma arte própria. À literatura é que concerne a tarefa de contar histórias através de palavras, não ao cinema. Buñuel e Dalí já o provaram, Méliès já o provou. Em 2001: Uma Odisséia no Espaço (sempre na ponta da língua), Kubrick recorre ao som para ligar repartições históricas distintas como a alvorada da humanidade e a descoberta de formas de vida extraterrestres e a imagem para transformar planos em regiões desérticas em testemunhos da vida pré-civilização/urbanização. Isso é cinema: literatura visual. Se não pode ser feito no teatro, melhor indício ainda.


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O que é uma Disney? É de comer?


Onde ficam os roteiristas no centro de tudo isto? Onde você deve estar pensando. No fundo, atrás de toda a maravilha. Encolhidos. Impotentes. O seu trabalho não interessa para o espectador. Não tenho a intenção de citar o último trabalho de Iñarritu, pois o considero a soberba em pessoa, mas em algo ele está certo: o que é um solilóquio reflexivo perto de carros saltando de um avião cargueiro?


James Gunn, diretor e escritor de Guardiões da Galáxia, rebateu as críticas da Academia aos filmes de super-herói há algum tempo. Gunn afirmou que quem assume que os idealizadores do gênero não amam tanto a arte cinematográfica quanto os cineastas 'sérios' está terrivelmente errado. E ele está certo. O amor de Gunn pelos seus personagens é transparente e, pessoalmente, sinto nojo dos que condenam o cinema pop. Blá, blá, blá, comercial, caça-níqueis, blockbuster, blá, blá, blá. Nojo. Porém, Gunn é uma exceção – mesmo porque Guardiões da Galáxia é excepcionalmente bom –. O problema está enraizado e o realizador está na superfície. A Marvel Studios encontrou uma fórmula de ouro e não parece pretender mudá-la. Esse é o problema: a inércia. Novas histórias, narrativas velhas. Hollywood não consegue largar.


Desde a aurora do cinema, os estúdios norte-americanos dominam a indústria cinematográfica global. A Paramount e a Warner Bros., por exemplo, precedem registros e tiveram enorme influência na formação do cinema contemporâneo. Sei que só farei com que os defensores da América levantem suas bandeiras, mas consequências de lado, sim, os estúdios estadunidenses, enquanto instituições, são os culpados. Quantas animações tem o Studio Ghibli (japonês) no seu currículo? 20. Qualidade? Constante. E quanto à Pixar, a epítome da criatividade do cinema americano? 14. Qualidade? Irregular. A culpa vem do exterior do estúdio e do interior do país: Hollywood.


script7O verdadeiro rosto do cinema clássico. Opa, não é hollywoodiano/ocidental o bastante para você?


Hollywood vem se esquecendo do seu estupendo histórico. Frank Capra, Humphrey Bogart e Billy Wilder – um dos maiores roteiristas que já viveu – estão caindo em oblívio. Não vale sequer tocar no assunto da originalidade, pois mais efeito surte aceitar, de uma vez por todas, a era dos spin-offs, remakes, reboots, sequências e adaptações. Não vale chorar por isto. Mas vale chorar por um lugar no coração da América que construiu o ‘clássico’ e que tornou-se tão pútrido.


A noção popular sempre volta à Hollywood. Quando se aproximam em pensamento do cinema clássico, as pessoas tendem a se recordar de Juventude Transviada ou Se Meu Apartamento Falasse. James Dean e Jack Lemmon, não obras mudas asiáticas. O romântico de Hollywood é a maior referência para o ‘clássico’. O mesmo ocorre com o pior do seu cinema de hoje. Os seus arrasa-quarteirões frenéticos são os únicos sinônimos para bons filmes que os espectadores casuais conhecem.


O que torna o cinema mainstream americano um dos mais retrógrados do mundo é a carência de incentivo e ousadia. Brasil, Coreia, Alemanha, Polônia, Inglaterra, Rússia e Suécia são apenas alguns dos países contribuindo para a inovação no cinema contemporâneo. Os gigantes do ramo (estúdios americanos) estão parados no tempo. Filmes e mais filmes nascidos da máquina. É a revolução industrial do cinema. Lanches de fast-food cinematográficos.


Enlatados, como o vergonhoso O Jogo da Imitação – que foi indicado a nada menos do que oito prêmios da Academia, vencendo inclusive o de melhor roteiro adaptado –. O maior enigma do script é solucionado quando o protagonista deixa algo cair no chão e por coincidência vê uma bíblia aberta na exata página em que estava a resposta para a sua questão. E o que Hollywood faz com este texto? Enche-lhe de prêmios. Reconhecendo textos fáceis que seguem Syd Field como Pai, Filho e Espírito Santo.


script8Marvel Studios? O que é isso? É de comer?


O desenvolvimento artístico do grande cinema estadunidense parou. A partir de agora, só o aprimoramento tecnológico – que não deixa de ser importantíssimo, porém o cinema não é apenas códigos –. Desenvolver computação gráfica para sustentar o novo título da Marvel Studios é o que há. Argumentos corajosos? Para quê? Edgar Wright que o diga, coitado. Se foi afastado pelo próprio estúdio de uma produção em que estava envolvido há anos por querer fazer algo de diferente, é compreensível o ódio com que os fanáticos atiram maldições contra as franquias de heróis de outras corporações.


Diga o que quiser sobre a Fox, mas pegue o próximo Quarteto Fantástico ou os dois últimos capítulos da ótima série dos X-Men como exemplo e veja o quanto ela está à frente no que toca a se fazer cinema. Pouco me preocupa a semelhança com os quadrinhos. Não quero textos fieis à outras mídias, quero bons textos para cinema. Neste artigo, falo sobre a composição de personagens complexas. Ainda espero um único herói da tão gloriosa Marvel Studios tão bem construído quanto Magneto ou Prof. Xavier.


script 9O maior título independente americano do(s) último(s) ano(s). Está vendo como há esperança?


Pegue agora o cenário independente, estrangeiro ou não. Ida, Boyhood – Da Infância à Juventude, Ninfomaníaca ou (o tão aguardado por mim) Um Pombo Pousou num Galho Refletindo sobre a Existência. Quando os menciono, não é para falar de ‘filmes de arte’. É para falar de desafio, de inovação – ou pelo menos sobre tentar –. Cinema é uma arte que surgiu de experimentos, afinal.


Não há analogia mais inspirada para a arte do experimento do que um cineasta dedicar 12 anos da sua vida a filmar o crescimento de um rapaz. Mas para Hollywood, há uma muito mais apropriada: as constantes greves de argumentistas. Desprestigiados e de bolsos furados, é natural que se revoltem.


É natural que qualquer um se revolte.


Se há alguns vanguardistas há décadas protestavam contra a convergência entre o cinema e o teatro, imagine o que diriam se soubessem que ele viria a se transformar em video game.


Quero áudio. Quero imagem. Quero texto. Quero cinema. Quero inovação.


Que tal voltar a experimentar, Hollywood?


Até lá, gostaria de dedicar este texto a um grande amigo, o Sr. Iusaf Tarabai, cuja idade não lhe faz a devida justiça e cujo nome não lhe concede o respeito merecido.



(...)

Cinetrópole trata-se dum estudo pessoal acerca da sétima arte em forma de road trip. De Toshirô Mifune à P. S. Hoffman, de D. Fairbanks à M. Haneke, da Nouvelle Vague aos super-heróis, de Um Corpo Que Cai à Sangue Negro. É uma jornada cósmica e espiritual pelos 120 anos do espetáculo que chamamos de cinema. E não deixa de ser, é claro, um passeio pela mente perturbada do seu chatíssimo autor, cuja opinião de porcaria não reflete a da equipe d’ O Vértice. Aproveite (ou não) a viagem.



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