Demolidor - 1ª Temporada | Crítica

A web-série segue Matt Murdock (Charlie Cox), um nova-iorquino cego que durante o dia trabalha como advogado na sua própria firma e à noite combate o crime com os seus sentidos sobre-humanos. Drew Goddard e Steven S. DeKnight, principais idealizadores da produção, afirmaram que no que toca à atmosfera e construção da narrativa, Demolidor está mais para Taxi Driver de Martin Scorsese e A Escuta (The Wire) da HBO do que para o gênero de super-herói. E é o que vemos: Demolidor é repleta de conspirações políticas, obsoletismo jornalístico, esquemas financeiros ilegais, instituições públicas corruptas, narcotráfico e figuras criminosas mais complexas do que o usual.


A storyline é borrada pela pequenez do próprio protagonista, que no princípio é completamente desimportante e ineficaz em mudar a sua cidade, um peão danificado num jogo de reis e rainhas onipotentes. Em paralelo aos Vingadores e aos outros heróis-celebridades, Murdock é traçado como um herói ainda maior, não por impedir invasões alienígenas, mas por ser forçado a limpar a sujeira deixada pelos deuses que o fizeram, já que a destruição causada durante as suas super-batalhas apenas serviu como estímulo para os negócios dos criminosos locais – background econômico, mais uma amostra evidente da influência de A Escuta –. Para ser honesto, o argumento da adaptação da é superior ao das histórias originais que o inspiraram, seja o arco de Miller, seja o de Bendis. Mais do que O Homem Sem Medo, Diabo da Guarda e A Queda de Murdock, o Demolidor da Netflix é a mais fascinante e bem escrita história do herói, desculpem-me os xiitas.


A exposição é menor em Demolidor do que o tradicional do gênero. Ainda existe (especialmente no início dos episódios), mas não alcança o nível de didatismo, mesmo porque a produtora conta com o binge-watching do seu público. Os primeiros episódios não demonstram preocupação em desconstruir os super-sentidos de Murdock ou os eventos que levaram à destruição de Nova Iorque. Por dever e necessidade, algo é mencionado aqui e ali, mas a total revelação destas qualidades é gradual. Muito como A Escuta, que inspirou a série, Demolidor trabalha nas sutilezas (ou melhor: na escuridão, como seu protagonista). Nomes como Tentáculo e Elektra Natchios não são ouvidos, mas não que não sejam citados ou apareçam em tela. Por vezes, a trama principal é tão tênue quanto os easter eggs. Requer atenção, dedicação e paciência.


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Sem a ameaça do infodumping, os problemas de roteiro ficam por conta das conveniências e dos excessos. Murdock está sempre no lugar certo na hora certa. Se ele caminha até a delegacia, acidentalmente encontrará um criminoso do seu interesse sendo interrogado. É  ainda trivial (e esperado) que aspirem conectar todos os núcleos, porém quando o fazem não tornam a ideia menos incomodante e a grandiosidade do cenário é mutilada. Outra falha no script é a indestrutibilidade dos personagens. Não de Matt, pois no seu caso, a força de vontade sobrepondo a capacidade física é precisamente o que torna o personagem tão adorável. Um certo personagem é explodido, alvejado, cai através de um prédio e só morre por escolha própria. Pode quebrar a capa de realismo da série, que cá entre nós, já é frágil. Porém, a maior de todas as lacunas é a relação de Matt e Foggy, que por vezes aparenta não ser tão profunda quanto nos quadrinhos. O episódio centrado nos dois é incrível e revigora a sua amizade, mas todos os anteriores parecem valorizar mais Karen como companhia para Foggy do que Matt. De resto, o texto é espetacular e a sua aderência ao material original está no ponto certo.


A Cozinha do Inferno é um covil de violência e imundície. E ela está no coração do seu Demônio. A nova produção da Netflix é, sem qualquer esforço, uma das mais violentas releituras de quadrinhos para a televisão. Fraturas rasgam a carne e expõem ossos, portas de carro são usadas como guilhotina e crânios são abertos com marteladas. A câmera se recusa a deixar o sangue escorrer na escuridão, ela o traz para a luz, onde ele pode ser contemplado. Observado até o seu efeito (do choque) arrefecer. Na altura dos últimos episódios, o mais sensível espectador já estará habituado aos mais excruciantes métodos de tortura. Matt Murdock é o que herói que a sua cidade precisa, não o que ela pede. A sua abordagem não é tão diferente da de um criminoso sem escrúpulos quanto gostaria – talvez seja por ter esta noção que em momento algum o advogado afirma ser um herói – e a série não tenta construir um vazio muito grande entre elas.


As sequências de ação de Demolidor estão, e adorava que pudessem ouvir a segurança com que digo estas palavras em voz alta, entre as melhores da história da produção televisiva americana. A coreografia de combate corpo-a-corpo é absurdamente magistral. Murros secos, pontapés duros, pura exaustão. O herói (ou vigilante) esgota todas as suas energias desferindo golpes contra uma manada de inimigos e quando acha que a horta está pelo fim, uma ainda maior chega. É a determinação de Murdock que o faz continuar lutando e sabe-se lá qual a façanha biológica que o mantém de pé, pois ele apanha. E muito. Se Charlie Cox queria se consagrar como galã, talvez seja difícil, porque passa toda a série cheio de hematomas e cortes no rosto. A batalha ininterrupta no corredor ao final do segundo episódio, embora uma clara analogia à cena do Oldboy de Chan-wook Park, é o melhor confronto com que a Marvel já nos presenteou. Pouco me interessa ver a Hulkbuster em ação; o que peço é por mais lutas como as de Demolidor.


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As performances estão tão extraordinárias quanto as habilidades do Homem Sem Medo. Esqueçam a pasteurização artística da Marvel Studios no cinema. Em Demolidor, ela permite que os seus atores componham personagens complexas, trágicas, ambíguas.


Cox possui o charme e expira a determinação do personagem e a segurança que envolve quem está próximo dele, enquanto Vincent D’Onofrio traz um reflexo das mesmas qualidades dentro de um corpo que, por si só, já é uma arma. O seu Rei do Crime – deveras superior ao dos quadrinhos, deixe-se claro, que em poucos momentos mostrou humanidade, e quando o fez foi por assuntos relacionados justamente à Vanessa, sua esposa – é um romântico conturbado, uma criança no corpo de uma besta. Os confrontos dos dois, seja através de palavras, seja através dos punhos, são todos deslumbrantes. Wilson Fisk é o antagonista mais bem esculpido das adaptações da Marvel até então.


Mas Cox e D’Onofrio não são os únicos. Deborah Ann Woll, uma das poucas coisas que me fez acompanhar True Blood até o fim, interpretava uma ótima Karen Page, resta-nos esperar pelo futuro da personagem para descobrir se ela se aproximará mais com a sua contraparte dos quadrinhos. A sua química com Elden Henson, que vive Foggy Nelson, é revigorante. Henson resgata o melhor da persona de Nelson: o humor estúpido, o desconforto na própria pele e o senso moral; ele é para Murdock o que o simpático e intimidante Wesley (Toby Leonard Moore) é para Fisk: o compasso final. E Vondie Curtis-Hall com o seu Ben Urich negro serve apenas para acentuar a irrelevância de padrões étnicos na retratação de personagens de quadrinhos.


As interpretações estão muito completas, todas elas. Os momentos de maior canastrice são guiados por personagens menores, pelo que não é muito comum testemunhar lapsos nas atuações do elenco principal.


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A narrativa visual de Demolidor é riquíssima. Amarelo e vermelho. Arquitetura gótica e moderna. Escuridão e chuva. Sangue (muito dele) e álcool. Feridas e armas. Tudo que a câmera tem como objeto de filmagem está lá para avançar o enredo – e apodrecer cada vez mais a imagem da cidade em que toma lugar –, de uma forma ou de outra, quer se compreenda a princípio, quer não. Não é por acaso que a janela do apartamento de Matt é idêntica a um vitral de igreja, é para criar o seu lar como um lugar seguro e impenetrável, apenas aumentando o impacto de qualquer cena com riscos que decorre dentro do espaço. E o amor do diretor de fotografia por travellings não-convencionais (incluindo um brilhante spin dentro de um automóvel e o espantoso plano-sequência no corredor) não passa despercebido ou gratuito. É uma série tão escura quanto cinematográfica – duas particularidades que comprometem os segundos finais do último episódio, que é bastante caricato –.


A abertura de Demolidor é sublime, muito mais do que o necessário para ilustrar a superioridade da produção em relação às séries da editora concorrente – defender uma produção da CW em contraste com uma da Netflix sugere muito analfabetismo dramático, narrativo e televisivo, de qualquer modo –. Se em Arrow o argumento confunde o Arqueiro Verde com o Batman de Christopher Nolan e sobre The Flash paira o fantasma de Smallville, em Demolidor, a Netflix compreende profundamente o seu personagem-título e não tenta transformá-lo em algo diferente.


A abertura é uma introdução ao outrora inacessível ponto de vista de Matthew Murdock: um mundo onde uma igreja desértica é o único refúgio para uma terra de tons de vermelho, banhada em sangue. Demolidor faz o que se compromete a fazer com responsabilidade. Enquanto a série protagonizada por Stephen Amell (apático, sem talento) procura ser sombria e visceral em teoria, Demolidor coloca a proposta em prática. Corrupção, morte, desesperança, tortura, pouco tempo para sub-tramas centradas em dramas pré-puberdade ou vilões semanais burlescos. Não é covarde, não tem medo de entregar episódios em que o seu herói não veste uniforme e entra em ação. O que importa é levar até o fundo o que se quer fazer.


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A minha intenção não era a de desperdiçar palavras discutindo sobre o assunto, mas já que entramos por este caminho, não posso deixar de observar algo. Os fanáticos pela DC Comics atacam as investidas da Marvel Studios por serem ‘infantis’, defendendo os da sua editora preferida por serem ‘sombrios e reais’ – mesmo quando não devem, pois foi o terrível Homem de Aço que me fez parar de amar a casa de Superman, Batman e tantos outros incríveis heróis –, porém as suas séries são produzidas pela CW, o canal mais focado no conteúdo adolescente da televisão americana. Agora possivelmente atacarão Demolidor exatamente por ser o que os filmes do Universo Cinematográfico da Marvel não são, afirmando que ‘histórias de super-heróis não têm de ser sombrias’, argumento até então utilizado pela própria Marvel.


No final, os xiitas farão de tudo para se convencer de que Demolidor, tão bem escrita e dirigida, é inferior a Gotham – história mais caricata do Batman (sem o Batman) desde que Joel Schumacher agarrou o personagem –, por exemplo. Embora Guardiões da Galáxia seja o único longa do Universo Cinematográfico da Marvel que me conquistou verdadeiramente, sinto-me contente por não ter chegado ao patamar do ridículo dos fãs da concorrente, que jantam ovo cozido e arrotam filé mignon.


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O sexto ano de Família Soprano e o quarto de A Escuta – talvez as duas únicas classificações máximas que eu daria em vida – são o que há de melhor na televisão americana, de fato, porém devem servir essencialmente como modelo para a avaliação específica de dramas criminais; assim como a segunda temporada de Battlestar Galactica é o parâmetro para ficções científicas e a quinta de Seinfeld para comédias. Com Demolidor, a Marvel acaba de criar um novo e altíssimo parâmetro que as próximas séries de super-heróis terão de se se esforçar para seguir. Ousada, com um texto magnífico, interpretações multifacetadas e visuais sofisticados, a primeira série nascida da parceria entre a Netflix e a Marvel me fez questionar o meu próprio processo de avaliação.


Demolidor não é apenas o melhor título de super-heróis da televisão ou o melhor lançamento da Marvel fora dos quadrinhos; é talvez a mais brilhante produção live-action de super-herói desde que Christopher Reeve nos fez acreditar que um homem pode voar.

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